sopros e assombros

sopros e assombros

Daniela Feriani

23/04/2018

Sinopse:

Sopros e assombros mergulha no dia-a-dia de pessoas em processos demenciais através de uma narrativa ensaística que aborda o ponto de vista dos próprios personagens. O filme convida o espectador a entrar nesse “mundo outro”, no qual realidade e alucinação, rotina e criatividade, terror e humor se sobrepõem.

Tratamento:

O filme acompanha a rotina de quatro pessoas com demência em diferentes estágios da doença – leve, moderado e avançado (em que não há mais verbalização, por exemplo) – através de duas linguagens narrativas principais – o cinema direto / observacional e o cinema poético. As cenas se desenrolam entre o cotidiano dessas pessoas (atividades de vida diária, como acordar, café da manhã, almoço, ver televisão, jantar, dormir, em que a casa é o cenário principal) e o extra-cotidiano ou o extraordinário (passeios, reuniões em família, situações inusitadas, como delírios, etc).

Além das cenas mais observacionais, o filme conta com uma linguagem poética/ensaística, em que cenas mais oníricas e metafóricas, como alguns fenômenos da natureza (vento, chuva, névoa, vôo, etc) trazem sensações de como é experimentar uma vida com demência. O filme também contará com depoimentos dos cuidadores principais e, na medida do possível, das pessoas em processo demencial, abordando, principalmente, histórias de vida e a visão de mundo dessas pessoas como um mundo possível, uma forma de subjetividade, ainda que não convencional. Também trará algumas encenações, quando elas forem possíveis, uma vez que se trata de pessoas com algum prejuízo cognitivo.

1. Epílogo

[som de vento]

[câmera lenta; som de vento]

[movimento de câmera: do dente de leão para o céu; do céu para o telhado da casa de Olga]

[música clássica]

[câmera entrando na casa de Olga; Olga dançando na sala]

[ponto de vista – sala rodopiando]

[do giro na sala de Olga para o giro na sala de Guilherme. Guilherme com o chinelo trocando o canal de televisão]

[música clássica vai ficando mais forte, tensa]

[giro na televisão; da televisão de Guilherme para a televisão de Célia; da televisão para Célia agarrando o cobertor, aflita, olhando para a TV]

[Close em algum animal da TV, como se fosse sair da tela]

[aumenta ritmo/tensão na música]

[música tensa]

[nevoeiro; câmera subjetiva/ponto de vista, como se telespectador estivesse entrando/passando pela névoa]

[névoa vai se dissipando; alguns raios de sol penetram a neblina]

[mudança de ritmo/som – suave, lento, calmo]

[movimento de câmera: do céu vai descendo para varanda da casa de Arthur. Arthur sentado na cadeira de plástico em frente da casa. Fala algo – sem som -, ri, acena, como se mexesse com pessoas que passam na rua]

[tela preta – entra nome do filme e autoria]

2. Começo

[minha voz/narração]

Faz 4 anos desde que vi pela última vez Olga, Guilherme, Célia e Arthur. A ansiedade do reencontro me leva a imaginar como eles estão. Será que Olga ainda gosta tanto de dançar? Guilherme continua a trocar o canal da TV com o chinelo? Célia ainda fica aflita porque acredita que o macaco da novela vai invadir a sala? E Arthur permanece tão bem humorado, mexendo com as pessoas que passam na rua?

[cena atual – Olga me recebendo no novo encontro]

[minha voz/narração]

Quando visitei Olga pela primeira vez, ela abriu um largo sorriso ao me ver e deixou a marca do batom rosa em minha bochecha. Toda vaidosa, com unhas pintadas, brincos, colar, pulseiras, anéis… e pantufa nos pés. Eu fiquei impressionada com a sua desenvoltura, ensaiando alguns passos de dança enquanto me apontava o sofá pra eu sentar. Logo se mostrou preocupada em me oferecer algo, dizendo que faria café – café que ela não saberia fazer, numa casa em que dizia não ser sua.

[cena atual – fachada da casa de Olga]

[movimento de câmera pela casa de Olga, apresentando-a para o telespectador – câmera subjetiva/ponto de vista; detalhes em alguns objetos (porta-retratos, prateleiras, enfeites, etc)]

[cena atual: a rotina de Olga: acordar, café da manhã, almoço, ver TV, jantar, dormir]

[cena transição – de um objeto na casa de Olga para um objeto na casa de Guilherme]

[cena atual – recepção do novo encontro com Guilherme]

[minha voz/narração]

Quando cheguei para o nosso primeiro encontro, esperei na sala enquanto Rosa ajudava o marido a se vestir. Ouvi-a dizer: “não, nego, não é assim. Isso é uma camisa, não é uma calça. Não é pra pôr as pernas, mas os braços”. Meu espanto tornou-se ainda maior quando ela me contou que Guilherme já tinha deitado a televisão dizendo que era para as pessoas não caírem. Uma vez, ao ver uma cena de briga na novela, Guilherme começou a gritar, bravo, por achar que as pessoas estavam brigando com ele.

[cena atual – fachada da casa de Guilherme]

[cena atual – «tour» pela casa de Guilherme; objetos, cômodos; detalhes]

[cena atual – rotina de Guilherme]

[cena de transição – de um objeto da casa de Guilherme para um objeto na casa de Célia]

[cena atual – recepção do novo encontro com Célia e marido]

[minha voz/narração]

Célia tremia muito quando eu a vi pela primeira vez. Com respiração ofegante, segurava firmemente um lenço e dizia “ai, meu Deus!” enquanto via televisão. Em uma cena em que aparecia um macaco, ela ficou aflita, parecendo que ia chorar. Apontou a TV e, em um grito abafado, soltou “não entra aqui!” Tentei acalmá-la, e disse que o macaco era bonzinho, mas, na verdade, o pavor de Célia me deixou atordoada.

[cena atual – fachada da casa de Célia]

[movimento de câmera – «tour» pela casa de Célia]

[cena atual – rotina de Célia]

[cena de transição – de um objeto na casa de Célia para um objeto na casa de Arthur]

[cena atual – recepção da nova visita a Arthur e sua esposa]

[cena atual – fachada da casa de Arthur]

[movimento de câmera – «tour» pela casa de Arthur]

[cena atual – rotina de Arthur]

[minha voz/narração]

Quando conheci Arthur, ele estava sentado em frente da casa, olhando a rua, sem camisa, descalço, com um band-aid colado no queixo. Cumprimentei-o e ele perguntou se eu queria sentar na cadeira. Eu quis saber como ele estava. “Tô bem. Só falta voar!”, disse, rindo.

[cena de transição – céu, vento, pássaros voando]

[volta cena dente de leão – sementes voando formam uma rede – analogia com neurônios]

3. Meio

[consultas – cenas desfocadas]

[cena atual – consulta de Olga]

[minha voz/narração]

Eu me lembro que a primeira vez que vi Olga foi em uma consulta. Assim que entrou na sala, cumprimentou-me com um beijo. Aquilo me desconcertou, já que eu tentava me fazer passar por invisível para não atrapalhar o trabalho médico. Mas Olga insistia em minha presença. “Eu conheço você?”, perguntou. “Acho que não”, respondi. “Conheço sim; eu já vim aqui”, ela enfatizou. “Ah, então pode ser!”, concordei. Quando o médico questionou sobre sua doença, Olga disse estar bem. E voltando seu olhar novamente para mim, sorriu: «Eu danço na terceira idade… eu não tô bonitinha?»

[cena de transição – tela em branco]

[cena atual – consulta de Guilherme]

[minha voz/narração]

Na consulta anterior, quando o médico perguntou o que Guilherme tinha ido fazer lá, ele respondeu: «ah, tá complicado, tá feia a coisa; tô tomando muito remédio».

[cena de transição – tela em branco]

[cena atual – consulta de Arthur]

[minha voz/narração]

Em sua primeira consulta, Arthur chegou todo animado, rindo e balançando os braços, como se estivesse dirigindo. Ao me ver, disse bem alto “bom dia!”. Exclamou várias vezes: “tô bem, vixi, tô bem mesmo!” e “ai, ai, a vida é boa!”. Ao olhar para as diferentes receitas entregues à esposa, Arthur brincou: “eba! Vou tomar um porre!”. Eu precisei segurar o riso.

[cena de transição – tela em branco]

[cena atual – consulta Célia]

[tela em branco]

4. Final

[cenas de passeios, cafés, delírios, situações inusitadas]

[cena atual – café com Olga e marido]

[minha voz/narração]

Em nosso primeiro café, Olga me ofereceu 8 vezes um pedaço de bolo. Mesmo eu tendo comido dois e recusado as outras ofertas da maneira mais educada possível, ela me ofereceria novamente.

[cena de transição – fenômeno da natureza]

[cena atual – café com Guilherme e Rosa]

[minha voz/narração]

Na primeira vez que tomei café com eles, Rosa dava uma bolacha de cada vez ao marido. «Senão ele faz a maior bagunça», me explicou. Guilherme sorriu várias vezes para mim enquanto comia as bolachas e Rosa contava alguma outra coisa.

[cena de transição – fenômeno da natureza]

[cena atual – café com Célia e marido]

[cena de transição – fenômeno da natureza]

[cena atual – café com Arthur e esposa]

[cena de transição – fenômeno da natureza]

[cenas das atividades lúdicas – álbum de fotografias; música; conversas]

[cena atual – despedida casa Rosa e Guilherme]

[minha voz/narração]

Quando saí da casa de Rosa e Guilherme, há 4 anos, já era de noite – tinha passado a tarde toda com eles. “É cedo”, disse Guilherme, tentando me convencer a ficar mais. Atravessando o quintal, Rosa me mostrou a bela horta que ela fez. Guilherme ficou na porta de casa, olhando-nos conversar. Já no portão, dou tchau a ele, que retribui o gesto com um sorriso.

[cena de transição – fenômeno da natureza – confusão/emaranhado]

[cena atual – despedida de Olga e marido]

[minha voz/narração]

Antes de ir embora, na primeira visita que fiz, Olga me deu um conselho. «Tem que ser divertida! A gente tem que fazer o que gosta!», exclamou. Como uma boa anfitriã, pediu para eu voltar mais vezes e disse ter gostado muito de conversar comigo. Eu sorri, envergonhada, e ela logo me deu um abraço apertado, deixando novamente a marca do batom rosa em minha bochecha.

[cena de transição – fenômeno da natureza – alegria; dança das flores no campo, vento

[cena atual – despedida Célia e marido]

[minha voz/narração]

Na primeira visita que fiz à Célia, ao me despedir, disse que gostei de conhecê-la. Ela riu um riso nervoso e perguntou: “onde você mora?” Fiquei com a impressão de que ela achava que eu morava ali, naquela casa.

[cena de transição – fenômeno da natureza – distorção/dissolução/sensação de desorientação]

[minha voz/narração]

Na outra vez que eu o vi, Arthur me contou que gostava de pegar a bicicleta e ir até o lago ver a água, ou até a passarela para ver os carros e os morros lá do alto. «Isso é lindo, é coisa de Deus”, disse, com os olhos cheios de lágrimas. E continuou: “Eu tô bem. Há muita coisa bonita no mundo pra ver. Se olhar em volta, há pessoas bem piores”. Eu agradeci, emocionada.

[cena atual – Arthur andando de bicicleta, como se voasse]

[minha voz/narração]

Reencontrá-los depois de 4 anos foi uma experiência intensa. Olga não dança mais, mas ainda deixa a marca do batom em minha bochecha. Guilherme continua a sorrir ao me ver e já não sabe o que é televisão. Célia, que não pronuncia uma palavra sequer, fala com os olhos e as mãos. Arthur não está mais tão humorado, mas ainda se emociona quando voa em sua bicicleta.

[movimento de câmera: do rosto de Arthur andando de bicicleta para o céu]

[volta cena do dente de leão; câmera acompanha uma semente, que vai caindo e rodopiando até parar na terra]

[volta música clássica – suave]

[começa a chover]





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