Cresci em uma cidade moderna, dentro de uma casa cheia de antiguidades. Meus pais se mudaram para Brasília antes de eu completar 3 anos, e sempre me impressionou observar os objetos antigos dos meus avós nas férias de família. As bonecas de porcelana da vó Deni, na casa da Gávea do Rio de Janeiro. Os pianos antigos do vô Person, no museu de piano de Gramado.
Eu nasci na década de 90. Quando eu tinha 11 anos, já existia computador, mas eu escrevia cartas para a minha prima em uma velha Olivetti. Minha mãe diz que a máquina era dela, mas eu suspeito que ela inventou isso para me incentivar a escrever. É muito provável que ela tenha sido comprada em uma das tantas feiras de antiguidades e antiquários que meus pais frequentavam.
Acho que 27 anos vivendo dentro daquela casa treinaram os meus sentidos para «velharias». Por isso, ao subir a rua da Consolação pela primeira vez, a concentração de lojas de luminárias não me chamou particularmente a atenção. Primeiro, pensei nos lustres dos meus pais, que a gente nunca podia ascender, porque todas aquelas lâmpadas consumiam muita energia.
A partir daí comecei a me perguntar sobre a relação entre as coisas e as memórias e fui parar em Tremembé, zona norte de São Paulo. Um espaço de 10 metros quadrados abriga ferramentas, histórias e muita poeira. O homem que ali trabalha tem rinite alérgica mas garante que isso não é problema. Dos 68 anos de idade, os últimos 20 foram dedicados a restauração de objetos antigos.
Amauri Moleiro se interessa por ferramentas desde criança. Durante muito tempo consertar objetos de amigos e vizinhos foi seu hobby de final de semana. Calvo e grisalho, de fala solta e gestos expansivos, ele me lembra um ilusionista.
Só mais tarde fui perceber a semelhança entre Amauri e George Meliès.
Enquanto uns levam anos para enxergar no hobby uma vocação, outros já nascem predestinados a trabalhar no ramo da iluminação. Waldemir faz parte da terceira geração da família Victoratto, que vende lustres e outras peças de vidro desde 1920.
Nos anos 50, a Lustres Victoratto’s se instalou na Consolação, que viria a ser conhecida poucos anos depois como a “Rua dos Lustres”.
O famoso jingle da Lustres Bobadilha tocava na rádio nos anos 60.
Há 1 ano e meio, a loja localizada no número 2023, próxima ao metrô Paulista, trocou de nome e direção.
«Bianca e Isabelle» é uma das poucas lojas da Consolação que ainda vende peças avulsas, sendo algumas delas antigas e não mais fabricadas.
Ao final do dia, as luzes dos faróis desfilam do outro lado da vitrina.
Apesar da correria característica da vida metropolitana, o trânsito de São Paulo possui um ritmo próprio, incontestável, lento: quase parando. Dentro da oficina de Amauri, não há lugar para a pressa. Por isso, ele desenvolveu meios de otimizar o tempo. Diante do inusitado sistema de imãs, o meu amigo, que operava a câmera, não conseguiu segurar o riso.
“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (…) o grau de lentidão é diretamente proporcional a intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” (A Lentidão, Milan Kundera)
Acredito que nem tudo passa com o tempo. Mas o que determina aquilo que atravessa os anos e sobrevive no presente ? As pessoas se imortalizariam nas coisas? Por que e como manter o passado vivo ?
Aos 23 anos, a sobrinha de Waldemir, Isabelle, não somente empresta seu nome como assume a direção da loja onde passou os anos de infância. A moça de modos tímidos prefere ficar nos bastidores, longe do contato com a clientela, diferentemente do avô, quando este ainda era vivo.
No subsolo da loja, encontramos a oficina onde o «velho» Victoratto desenhava em superfícies de vidro. Esse cantinho é um túnel do tempo para Waldemir.
As memórias perduram, habitando lugares e objetos que sofrem os desgastes do tempo. Essa peças quebradas, oxidadas, enferrujadas, chegam às mãos de Amauri que sempre se interessa pelo histórico delas.
As histórias das pessoas e seus objetos são publicadas no Blog de Amauri.
Amauri reconhece e sabe aproveitar as facilidades proporcionadas pela Internet. A gente oscila entre real e virtual até mesmo quando o assunto é antiguidade: penso no telefone antigo que comprei no Mercado Livre e, anos depois, revendi em uma feira de rua. Algumas pessoas preferem «navegar» na Internet para adquirir informações e produtos, e nem sempre é fácil o deslocamento até lojas tradicionais, como as da Rua da Consolação. A caminho do estacionamento, Waldemir comenta que antigamente os carros podiam parar no meio fio.
Ainda existem muitas lojas de iluminação na Consolação, de diferentes tipos e tamanhos. À esquerda, a pequena e extinta Lustres Bobadilha. À direita, a extensa e moderna Yamamura.
Silvia Bobadilha fala como era a Rua da Consolação antigamente:
O tempo passa, os lustres resistem, sob camadas e camadas de poeira.
A limpeza desses objetos requer delicadeza.
Se der errado, pode proporcionar cenas cômicas …
A queda de um Lustre também pode ter efeitos dramáticos.
Manter o lustre inteiro parece ser uma tarefa difícil, mas também é preciso sensibilidade para perceber as expectativas de cada cliente.
As aparências confundem os sentidos, mas existiria um prazer em se deixar enganar? Neste caso, poderíamos considerar a memória uma reinvenção do passado?
Para Amauri, é essencial para a identidade da peça preservar as marcas do tempo e do uso. Seriam elas testemunhas da história afetiva e instrumental, mesmo quando fabricadas?
“Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única que se desdobra a história da obra. Essa história compreende as transformações que ela sofre, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, e as relações de propriedade em que ela ingressou” (A obra de arte da era da reprodutibilidade técnica – Walter Benjamin)
As pessoas manipulam imagens artesanalmente, muito antes da invenção de técnicas de reprodução como a xilogravura e a imprensa. Mas a medida que esses processos se banalizam, o novo e o velho se confundem em experimentos criativos.
A cliente queria uma carranca pintada «no estilo Romero Brito». Restauração ou customização?
«Personalizar» algo que já é, de certa forma, único: transgressão ou metalinguagem? Porém, nem todo mundo gosta de misturar as coisas.
Li uma vez uma reportagem sobre uns lustres da antiga sede do Senado no Rio de Janeiro que foram levados para o atual prédio, em Brasília. Em entrevista, um dos organizadores disse se tratar de uma exposição temporária uma vez que os lustres do séc XIX não combinariam com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Acho que essa declaração resume bem o que sinto quando vejo lustres por ai, em salões de beleza, bares, e nos apartamentos das pessoas. Falta contexto ! É como se eles não fizessem sentido fora de um castelo, uma catedral ou um hotel cheio de fantasmas. Acho engraçado quando citam o Palácio de Versalhes para dizer que lustres nunca saem de moda.
Para Célia, irmã de Waldemir, os gostos mudam, mais algumas coisas são atemporais.
Contudo, Isabelle ressalta que o valor das peças nem sempre é aceito pelas pessoas.
Nos tempos atuais, já não existe mais lugar para a tradição?
Com o desenvolvimento mecânico de novas técnicas, encontra-se cada vez menos pessoas que trabalhem e ensinem a lapidação de vidro.
O envelhecimento dos poucos restauradores que existem no Brasil preocupa Amauri. Para ele, os jovens preferem o «conforto» de trabalhar na frente de computadores. Um dos filhos dele, inclusive, trabalha para o Google.
Já no contexto de um empreendimento familiar, pode-se pensar que a continuidade seja um caminho»natural» ou mais fácil. Porém, o desinteresse das novas gerações Victoratto prevalece. Waldemir tem dois filhos, um trabalha com ele, o outro não se interessa pelo negócio.
Representante da quinta geração dos Victoratto, Isabelle é uma das poucas que ainda se interessa pela loja. Ao lado de Irene, funcionária da loja há oito anos, ela explica que a continuidade do negócio era um desejo do avô.
O que pesa mais na preservação da tradição : O afetivo ou o econômico ?
E no caso de Amauri ? Qual seria sua motivação maior ? O indivíduo ou o coletivo ?
Por meio do Blog, Amauri passa o seu legado adiante, publicando dicas e respondendo a dúvidas de clientes.
Nem os lustres escapam ao esquecimento. Alguns deles, sobrevivem a incêndios mas passam desapercebidos na correria do dia-a-dia:
Um outro sobrevivente, é o lustre da bisavó de Isabelle: o item tem mais de 150 anos e, depois de passar de casa em casa, foi colocado à venda na loja.
Para Célia, a última dona do lustre, não é fácil se desfazer da peça. Mas a questão do espaço se torna um imperativo: o passado já não encaixa mais no presente?
Passar algo concreto adiante, seja um empreendimento, seja um objeto, seria uma forma de garantir que as memórias não se percam no esquecimento? Neste caso, quantas histórias uma mesma coisa pode acumular?
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