Cidade não é só asfalto, cerrado não é só mato

Cidade não é só asfalto, cerrado não é só mato

Andre S. Bailão

23/04/2018

Sequência 1)

Filmagem de um trajeto a pé por ruas de São Paulo, entrando numa praça, seguindo pelos caminhos dentro dela. Desenho de som atentando às mudanças do trajeto: sons do trânsito, sons da praça (água corrente, pássaros). Apresentação da personagem paisagem, o «cerrado», com uma indicação inicial da personagem humana, «Daniel».

Cidade de São Paulo, Zona Oeste, saída do metrô Vila Madalena. Outono, dia seco e ensolarado, azul pálido do céu, período da manhã.

Andamos por calçadas, cercados pelo trânsito, por um trajeto que desce pela avenida Pompéia. Barulhos de buzina, motos, motor de ônibus, britadeiras.

No coração da selva urbana, há muito vidro, concreto e asfalto, além de algumas poucas árvores plantadas e enfileiradas como postes de eletricidade, disputando seu espaço com a fiação aérea.

Viramos em uma esquina e entramos em uma grande praça, até então escondida da vista atrás dos muros de uma obra.

A praça é um alento para os barulhos e as cores contrastantes da cidade. Um ninho verde, protegido do sol por grandes árvores que abafam o som do mundo em que estávamos. Ouvimos pássaros, e som de água corrente, bem baixo, mas aumentando conforme andamos.

Apesar de diferente da cidade, a praça é um produto dela.

As árvores são plantadas enfileiradas em torno de caminhos pavimentados, há escadas com corrimão, mesas para lazer, e a grama está cortada. A aparente desordem natural é muito bem organizada.

Andando, somos atraídos pelo barulho de água. Chegamos a um círculo de plantas rasteiras, diferentes da grama da praça, rodeado por concreto, como um minúsculo teatro de arena. Há várias espécies e tudo parece uma pequena horta, ou um jardim.

A água escorre por canos que saem de um barranco. Não são canos de esgoto. A água parece limpa e cai direto nas plantas, mas o barulho que ouvimos não é de terra molhada, mas de água caindo sobre água.

A câmera se aproxima e mostra que o chão preto embaixo das plantas na verdade é um minúsculo lago, cheio de girinos e peixes e recoberto por dezenas de plantas aquáticas. Vemos rapidamente algumas placas e mensagens escritas no concreto.

Continuamos andando pelo caminho pavimentado da praça, em que mesas de concreto dividem espaço com aparelhos de exercício da prefeitura, árvores enfileiradas e grama aparada. Vamos em direção a um pequeno morro, com uma grande pedra no topo.

No barranco do morro, escondido atrás das grandes árvores, há inúmeros caminhos de terra batida que ziguezagueiam até o topo.

Aqui no barranco, a grama não tem muito espaço, cresce um mato estranho, não cortado e aparado. Apesar disso, andando, vemos que ele é organizado em torno do caminho.

Subindo o morro, vemos com mais foco que são vários tipos de capins, arbustos, plantas estranhas, completamente diferente do fundo da praça das gramas e árvores. No morro, o caminho é bem iluminado, ensolarado e as plantas são rasteiras, pequenas. O oposto da parte de baixo da praça com suas sombras.

No topo do barranco, os capins ficam mais altos, há até pequenas árvores, diferentes daquelas plantadas no fundo da praça. Encontramos um homem trabalhando com o mato. Ele é barbudo, vestido de preto, com botas e chapéu. Parece um andarilho ou um jardineiro.

Munido de enxadas, pás, tesouras de jardinagem, inúmero sacos pretos de lixo, vemos ele plantando pequenas mudas que retira de vasos e sacos. Ele também arranca plantas e gramas da trilha.

Vemos plantas coloridas, floridas, espinhentas, delicadas, pequenos frutinhos, até um abacaxi, vários tipos de capim e arbustos, além de inúmeras borboletas, vespas, abelhas – tão diferentes entre si quanto as plantas daquele jardim.

Afinal, o que é esse lugar? Quem plantou esse jardim? Por que ele é tão diferente do resto da praça?

O filme volta para o homem trabalhando, e ele está conversando com a câmera, o som abafado. Até que o som aumenta e ele fala para a câmera que o cerrado está mudando, com o inverno se aproximando. Daqui a pouco tudo vai estar com uma cara mais seca.

Eu pergunto: mas aqui é um cerrado? Estamos no meio de São Paulo.

Sequência 2) O filme apresenta rapidamente um histórico sobre a praça, a avenida Pompéia, o rio e a urbanização. Do mundo mais amplo da cidade, voltamos ao micromundo da praça: as nascentes, os moradores que cuidam delas, a trilha de cerrado, Daniel se apresentando. Imagens e filmagens de arquivo, mapas, misturado com filmagens na praça. Cortes rápidos, som em off de um narrador e depois do Daniel.

Narrador em off: A praça é oficialmente chamada de Homero Silva, mas conhecida por muitos como Praça da Nascente.

Ali um grupo de moradores e ativistas, chamado de Ocupe & Abrace, realiza mobilizações para abrir e cuidar das nascentes do córrego Água Preta, hoje coberto depois da urbanização da avenida Pompeia no início do século XX.

Mas o córrego ainda vive. Continua correndo para desaguar no Rio Tietê, mas escondido pelo asfalto.

Ele mostra sua cara principalmente durante o verão, quando as chuvas fortes fazem suas várzeas subterrâneas transbordarem das galerias e invadirem a avenida.

Durante a crise hídrica em São Paulo entre 2014 e 2015, alguns grupos de ativistas que cuidam das nascentes de São Paulo ganharam notoriedade na mídia.

Na metrópole em que a chuva não vinha do céu e nem das torneiras, esses ativistas mostravam sua abundância na cidade, escondida embaixo dos nossos pés.

Chamavam atenção para essas paisagens esquecidas e silenciadas.

Narrador em off: uma das ações mais conhecidas foi a da nascente do Água Preta, desenterrada, libertada e guiada por esses moradores pelos canos instalados nos barrancos da praça para desaguar no pequeno lago construído por eles.

O lago artificial com as nascentes naturais recebeu peixes e girinos para combater os mosquitos que transmitem a dengue.

Das nascentes, voltamos ao topo do morro do cerrado.

Vemos o andarilho andando e trabalhando na trilha.

O filme corta para uma cena em que ele, sentado, com o morro ao fundo, conta que se chama Daniel, é um artista que desde 2015 trabalha em construir uma trilha de cerrado.

Sua ideia surgiu por suas andanças em Sao Paulo, fazendo trilhas urbanas e desenhando. Colhendo mudas de cerrado por terrenos baldios, organizou exposições criando uma micropaisagens de cerrado no meio de um salão numa galeria de arte importante da cidade e em um museu no interior do estado.

Com ajuda de amigos e mutirões dos moradores, ele transplantou as mudas que tinha em casa para o «morro do careca», como é chamado, com sua terra vermelha, chão pedregoso, e fundou a trilha em junho de 2015.

Mas ainda não sabemos o porquê de sua ação.

Sequência 3) Buscando o cerrado por São Paulo. Acompanhando Daniel em uma expedição por um terreno baldio. Som direto / sound design. Apresentação do problema da personagem principal, o que Daniel busca com a trilha.

Em outro dia, seguimos o artista em uma expedição em um terreno baldio.

Vemos ele procurando pequenas plantas e ervas no chão para plantar na trilha na Pompeia.

Conversamos com ele, pergunto porque um cerrado numa cidade como São Paulo. Ouvimos ele falar que a cidade era chamada de Campos de Piratininga na fundação. As pessoas só pensam nas grandes árvores e na mata atlântica, mas o cerrado está lá também, esquecido em alguns recantos. Em meio à região de morros e vales de rios coberta por florestas, havia diversos campos de cerrado também.

Andando com ele, vemos ele falar das pequenas plantas esquecidas pela cidade e pelas pessoas, fantasmas de um mundo pisoteado, apagado, soterrado e cortado. Elas estão por toda a parte, basta uma mistura de sorte com um olhar cuidadoso para encontrá-las pequeninas, crescendo em recantos onde nem a cidade do asfalto, do concreto, nem a cidade dos jardins planejados com grande árvores se lembram.

Existe uma disputa de imaginação, e contra as grandes árvores, as flores e plantas exóticas de jardinagem e a mata atlântica, o cerrado, com suas pequenas plantas que parecem erva-daninha e mato feio, perde. Daniel diz com um tom agressivo, meio irônico, quase sorrindo: «o cerrado já perdeu essa guerra. O que eu faço é mostrar para as pessoas um fantasma. Não é um projeto para salvar nada, não estou aqui para abraçar árvores».

O cerrado

Sequência 4) Indo ao Cerrado Infinito. Apresentação do problema do filme, quais são as tensões envolvidas em volta da trilha.

Seguimos Daniel por uma das ruas arborizadas e pacatas, sem muitos carros, do bairro da Pompeia, próximo à praça. Inverno, os dias estão secos.

Andando com seus instrumentos, paramos e olhamos para as plantas ao nosso redor: grandes árvores urbanas, plantas floridas exóticas. Ele fala sobre essa obsessão do paisagismo por plantas estranhas ao cerrado. Vemos uma planta minúscula crescendo em meio ao concreto da rua, abaixamos e ele mostra como essa planta é uma sobrevivente. Há várias delas em recantos esquecidos de São Paulo. Mas há sempre uma obra para devastar um terreno baldio.

Chegamos na praça (por trás, por outro caminho diferente do início do filme), com os instrumentos de jardinagem dele. Andamos até a trilha, onde ouvimos barulhos de obras. Do lado da praça há uma obra gigantesca de um futuro prédio. Daniel é filmado apontando para a obra e dizendo que recentemente os moradores se mobilizaram para tentar impedir que ela fosse feita em cima das nascentes. Mas contra o crescimento imobiliário, a disputa está perdida, como o cerrado do interior do Brasil não tem chances contra o agronegócio.

Andando pela praça, ele aponta para as árvores, pequenas ficus, que daqui décadas estarão do tamanho da maior dela, uma árvore gigantesca que fica exatamente embaixo do morro do cerrado. Todas elas vão secar as nascentes daqui, ele diz – não adiante ligar para a prefeitura, em ano de eleição, ninguém vai cortar árvores. As pessoas protestam contra o corte de árvores. Mas existe uma tensão escondida aqui, entre a mata e a savana. As árvores que as pessoas amam são boas para proteger os cursos dos rios, mas elas secam as nascentes. Só o cerrado é bom para a nascente, ele diz.

A prefeitura só aparece para cortar a grama, e às vezes os cortadores ameaçam passar em cima do cerrado: acham que é mero «mato».

Outras sequências…

As tensões do filme serão exploradas a partir dos conflitos e as ameaças ao cerrado entre natureza/cidade, nativo/exótico, mato/jardim e entre artista e moradores do entorno que cuidam das nascentes, artista e município (cortadores de grama), praça e obra do prédio, entre o cerrado e grupos de árvores, entre as plantas invasoras e exóticas e o cerrado.

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